Por Pe. Raimundo Gordiano
Após o tempo litúrgico da quaresma, vivido como quarenta dias de exercícios intensos de oração, penitência e caridade, chegamos ao tempo para o qual nos dedicamos preparar. O tempo pascal.
A páscoa, a grande festa da ressurreição do Senhor, merece ser sempre refletida e retomado seu sentido verdadeiro para a vida cristã, a fim de se vencer as tentativas de deturpação comercial ou de enfraquecimento do sentido devido ao indiferentismo religioso. A páscoa não é uma festa do passado, relembrada apenas como comemoração ou aniversário. É o fato fundante de nossa vida plenificada em Jesus Cristo. Daí ser muito razoável retomar, ainda que em poucas linhas, o que nos quer dizer esta festa.
A festa pascal é herança dos judeus, que por sua vez deram sentido inteiramente novo à celebração de antigos povos árabes, os quais celebravam o rito de imolação de um cordeiro ou cabrito, em busca de proteção ao seu rebanho. Tratava-se de ungir os umbrais da tenda com o sangue do animal imolado, visando desviar as forças das hostilidades maléficas, proteger a moradia e seus moradores, bem como a proteção do seu rebanho.
O povo de Israel celebra a páscoa retomando o feito da libertação realizada por Javé, na noite em que o Senhor golpeia o Egito e poupa a vida dos israelitas, sob a liderança de Moisés (Ex 12,13.21ss). Esse modo de celebração tem suas particularidades, destacando-se o fato de ser realizado na casa sob a presidência do pai da família. Assim foi celebrada a páscoa por muitos anos.
Os percalços da história do povo de Deus, os levou longe do cumprimento da Aliança para a qual apontava a festa Pascal. A passagem da terra da escravidão à terra da libertação celebrada na páscoa só foi possível porque houve um compromisso selado muito antes entre Deus e seu povo através do patriarca Abraão (Gn 15,18; 17,1-21…). Em vários momentos o povo se desviou do caminho de Javé e foi infiel à sua parte no compromisso com Deus. Por isso, durante o reinado de Josias (640-609 a.C), realiza-se grandes mudanças no esforço de se superar os desvios cometidos durante a história, objetivando trazer o povo de volta a fidelidade a Javé. Reformulou-se o modo de celebrar essa páscoa. Passando de uma celebração familiar, tornou-se uma ação que todos os israelitas celebraram vindo a Jerusalém; ela deve operar a reunião do povo para que ele confesse sua fé (LACOSTE, Yves-Jean. Dicionário Crítico de Teologia, pg.1349). O sentido mais original da Páscoa de Israel, todavia, é a ação de Javé que libertou o povo da escravidão egípcia.
No Novo Testamento perdura a celebração pascal como festa nacional, quando todos vem em peregrinação à Jerusalém e fazem seus rituais entregando os animais a serem oferecidos em sacrifícios no Templo. Jesus, no entanto, não celebra a Páscoa apenas como celebração nacional, mas retoma seu sentido familiar. Ele celebra a páscoa com seus amigos e assume a posição do Pai de família, reunindo seus filhos e presidindo a solene liturgia junto dos seus (Mc 22,14-20; Jo 13, 1ss; I Cor 11,23-26).
Há algo ainda maior na festa pascal de Jesus. Ele a preside recordando a libertação do passado escravo nas mãos do Faraó, em seguida ele a realiza, vivendo-a, realizando a passagem da grande escravidão do pecado, do mal e da morte, para a libertação total, para a vida plena. A imolação de Jesus se dá no momento em que se celebrava no Templo o sacrifício dos cordeiros destinados à refeição pascal. Jesus é o verdadeiro Cordeiro, imolado pela salvação do povo (Jo 1,29; Mt 27, 45.51). Desde então se pode dizer que Jesus assume a postura de sacerdote porque preside a páscoa e de vítima oferecida em sacrifício.
A páscoa a partir de Jesus, ganha novo sentido. É passagem, é libertação, renovação da vida. É evento histórico, mas também é mistério. Nele a Aliança feita entre Deus e Abraão selada com o sacrifício dos animais, torna-se uma Aliança eternamente nova, selada com o sacrifício do Cordeiro de Deus que tira o pecado o mundo (Jo 1,29). As testemunhas viram a trajetória de seu sofrimento. Viram quando e onde ele fora sepultado, e depois testemunharam sua presença viva, mas não viram o exato momento em que se deu a ressurreição. O mistério pascal de Cristo vai além do fato histórico.
No sentido cristão, o evento pascal torna-se o centro da vida e da fé. Mas não basta saber que Jesus Cristo vive. Os Evangelhos traçam um itinerário mostrando o caminhar pelo qual a igreja nascente, através dos discípulos, deixou-se envolver pelo mistério pascal. Viram os sinais de sua ausência- túmulo vazio, faixas que enrolaram o corpo abandonadas (Jo 20,5ss). No seguimento da experiência viram Jesus ressuscitado, aparecendo em momentos e situações diferentes, totalmente livre dos condicionamentos espaços-temporais (Lc 24,31.36; Jo 21,15ss). A etapa de maior relevo na vida dos discípulos frente a páscoa do Senhor, é quando de fato, eles fazem a experiência do Cristo vivo.
O mistério pascal é que dá sentido e razão à nossa vida cristã. Não basta todavia, saber que Ele vive. A certeza real e intelectual de sua ressurreição só se realiza quando torna-se experiência vital. Quando o discípulo, envolvido pela presença do ressuscitado, se deixa conduzir por Ele e permite que Ele viva através de sua vida.
O Cristo ressuscitado nos garante a vitória da vida sobre o poder do mal e da morte. E já durante a jornada histórica de nossa existência podemos contemplar o esplendor da vida eterna. A páscoa de Jesus se realiza na vida de todas as pessoas quando a força da vida e do amor os torna livres das amarras de todos os males e pecados, quando se busca o mistério divino presente nas realidades humanas, quando se vive a eternidade na e através da temporalidade. Mas acima de tudo, quando a vida é promovida, protegida, defendida e vivida plenamente em todas as suas dimensões.
Todo cristão tem a graça desafiadora de celebrar a páscoa de Jesus na liturgia e na vida. Celebrando a ressurreição, vivendo como ressuscitado. Festejemos a Páscoa, mas acima de tudo, sejamos Páscoa.